Texto: Eduardo Carli para A Casa de Vidro | Ilustração da capa: Michael Byers para Portland Montly
Os desafios e dificuldades para a concretização de uma comunidade utópica estão no epicentro da excelente série documental Wild Wild Country. Como realizar, em um pequeno enclave territorial, uma sociedade radicalmente outra, enclausurada em um território e rodeada de inimigos? Como um “guru politicamente incorreto” e líder espiritual autor de dezenas de best sellers como o Rajneesh (vulgo Osho) poderia, longe de sua Índia natal e nos EUA da Guerra Fria, levar adiante seu ambicioso projeto societário alternativo?
Em seu livro Arqueologias do Futuro, Jameson realiza uma sondagem destes temas que envolvem a concretização de uma clausura utópica em meio a uma realidade social pouco hospitaleira (sobretudo na parte 1, capítulo 2: “enclave Utópico”, pg. 37 a 54). Nesta obra que aborda O desejo chamado Utopia e outras ficções científicas (Ed. Autêntica, 2021), o autor salienta que o anseio utópico, quando busca realizar-se, usualmente busca um espaço segregado (como uma ilha, o que nos remete ao clássico inaugural do gênero, Utopia de Thomas More), onde possa construir sua comunidade alternativa em relativo isolamento.
“O espaço Utópico é um enclave imaginário dentro do espaço social real – em outras palavras, a possibilidade mesma de espaço Utópico é resultado da diferenciação espacial e social…” (JAMESON: 2021, pg. 45), como é o caso da Cidade do Sol de Campanella, forjada para tentar generalizar para a sociedade toda um pequeno enclave, no caso: o monastério. A particularidade da utopia de Osho está no período histórico: tenta realizar-se em meio à efervescência da Geração Hippie e das contraculturas que emergem da contestação ao imperialismo estadunidense na Indochina (sobretudo Vietnã e Camboja).
Trocando em miúdos: como sobreviveria neste pequeno enclave a sociedade alternativa e utópica de micro-escala, se estará rodeada por um regime estabelecido hostil em macro-escala? Como o micro insurgente pode vencer o macro conservador, se este monstruoso Leviatã da conservação, defensor da “moralidade e dos bons costumes” consagrados pela tradição, vê como sua função expurgar e aniquilar quaisquer experimentos societários marcados como exageradamente libertários ou subversivos?
São temas brilhantemente abordados também no romance de Hawthorne, The Blithedale Romance (1852), já por mim analisado (em inglês) no Awestruck Wanderer. Neste livro do brilhante autor de A Letra Escarlate os percalços na constituição de uma comuna utópica transcendentalista (inspirada nas ideias de Emerson e Fourier), no território do Massachussetts, recebem uma descrição crítica de rara lucidez e que aponta para vários motivos que explicam seu colapso(a Brook Farm utópica foi algo transitório, uma espécie de bolha de sabão social que logo se aniquilou). Similarmente a Wild Wild Country, onde irrupções distópicas emergem, corroendo e fazendo colapsar a transiente utopia concretizada – que logo se arruina.
Tem sido uma de minhas aventuras intelectuais compreender melhor as trajetórias de vida de pessoas como Sheela e Osho, estes spitual seekers que estiveram na liderança desta ousada tentativa de transitar por caminhos fora dos trilhos da normalidade social. Ao assistir não apenas a Wild Wild Country, mas também ao documentário anexo Searching for Sheela, ambos produzidos pela Netflix, percebi ali a presença de buscadores de sabedoria – certamente humanos, demasiado humanos – que ousaram discordar daquilo que costumeiramente se prega e construir modos de convivência inovadores. Correndo todos os riscos e pagando altos preços.
Na primeira metade dos anos 1980, os seguidores de Bhagwan Rajneesh, o excêntrico guru indiano que depois ficaria conhecido como Osho, decidiram fundar uma comuna utópica no estado do Oregon, no Noroeste dos Estados Unidos, tendo escolhido um território nas proximidades de uma cidade pacata, com menos de 100 habitantes, chamada Antilope.
Os cidadãos e cidadãs “de bem” desta minúscula cidadezinha certamente não viram com bons olhos a chegada do que deve ter-lhes parecido uma invasão de bárbaros hippies que não rezavam pela cartilha da monogamia heteropatriarcal cristã.
Nesse aspecto, o destino dos Rajneshees nos Estados Unidos é mais uma demonstração, similar ao caso do psicanalista e reformador social alemão Wilhelm Reich (que teve livros censurados e queimados antes de ser preso nos EUA, tendo morrido no cárcere), do quão virulenta pode ser a moralina (para falar como Nietzsche) dos que são tradicionalistas em costumes e conservadores em política. O espectro da libertação sexual e de uma espiritualidade que dê mais liberdades aos corpos em interação e ao erotismo é algo capaz de despertar ferozes pânicos morais nas forças de conservação do mesmo e do antigo.
Este status quo ferozmente conservador pôde transformar um grupo da contracultura e da espiritualidade alternativa em alvos de uma truculenta campanha de difamação, perseguição e tentativa de extradição e extermínio. Os poderes instituídos visavam, no fundo, uma finalidade que infelizmente foi bem sucedida em prol do establishment: riscar totalmente Rajneeshpuram do mapa dos Estados Unidos da América.
A deportação de Osho e o aprisionamento de Sheela são sintomas de uma doença sociocultural epidêmica nos Estados Unidos da Agressão. Smells like bigotry and xenophobia! O que podemos notar neste caso é uma intolerância fanática manifestada pelos bons cristãos contra um culto no qual o conceito de sexo livre possuía uma certa sobressalência, ainda que sem ter a centralidade que lhe foi atribuída na representação paranóica, realizada por seus antagonistas, onde os rajneeshs (os comuneiros seguidores de Osho) são pintados como anárquicos tarados inspirados por um satânico paganismo que justifica uma nova Cruzada.
Não se trata aqui de construir uma imagem idealizada daqueles que construíram e coabitaram nesta Utopia contemporânea tão problemática e disfuncional como foi a cidade de Rajneeshpuram, fundada após uma série de problemas em Puna, na Índia, que obrigaram a fundação Rajneesh a buscar um novo solo onde enraizar seu projeto comunitário. A série descreve em minúcias e de maneira realista todos os detalhes da fundação e do funcionamento cotidiano da comuna que são de profundo interesse para quem quer que se interesse por movimentos sociais de refundação social, de inovação política etc.
A fundação da comuna envolve uma afirmação de direitos fundamentais previstos na Constituição dos EUA: um novo corpo político emergiu que precisou ser inicialmente reconhecido pelas autoridades, como era de direito em um país que diz respeitar a laicidade do Estado e, portanto, a multiplicidade de expressões da espiritualidade. Mas Rajneeshpuram mostrou-se desde o princípio um enclave muito anômalo e transgressivo para que o sistema político tradicional pudesse tolerá-lo.
A perseguição a uma minoria religiosa raramente se dá apenas no âmbito das ideias, do entrechoque de argumentos teológicos, com frequência aderindo a práticas concretas de silenciamento ou mesmo de destruição física da seita antagonista. Com isso quero dizer que Rajneeshpuram não foi combatida de maneira democrática, com seus valores e práticas criticados na arena pública, mas foi transformada em uma questão de polícia.
Tentou-se construir a imagem demonizada de um Baghwan e de uma Sheela como os perigosos líderes de uma seita dedicada a conspirar contra os Estados Unidos da América através da violação sistemática de várias de suas leis, sobretudo aquelas que dizem respeito à imigração. Terminaram por conduzir o processo de deportação de Osho de maneira agradável aos defensores do establishment. Law and order triumphs again!…
Uma das discussões mais interessantes sobre a batalha entre os United States of Aggression vs Rajneeshpuram diz respeito ao tema da laicidade do estado. Surpreendentemente, este se torna um argumento daqueles que, no aparato de Justiça, trabalharam pela destruição da comuna e pela extradição de seus líderes: a constituição dos USA proíbe que uma religião possa agir com poder de Estado, de maneira a proteger a emergência de uma teocracia como aquela que se instituíram no Irã sob o domínio do Aiatolá Khomeini.
O que é curioso são os Dois Pesos e Duas Medidas que estão claramente em jogo na peseguição aos Rajneeshees. O establishment logo convoca suas tropas, seu soldados fardados, suas viaturas em grandes manadas motorizadas, para tocar o terror sobre uma comuna considerada demasiado alternativa para o gosto dos fanáticos de Cristo. Na mídia corporativa tenta-se criar uma versão demoníaca do inimigo que chega ao despautério de forçar a barra numa comparação estapafúrdia entre os comuneiros que tentavam construir Rajneeshpuram e os suicídios-em-massa ocorridos na seita de Jim Jones. Uma analogia bastante injusta pela razão óbvia de que Jim Jones era um cristão, completamente ignorante das vertentes orientais de sabedoria e espiritualidade, de maneira que tem muito mais afinidade ideológica e histórica com os cristãos de Oregon que quiseram aniquilar os “Oshistas” do que com os hippies de tropismos hinduístas e budistas de Rajneeshpuram.
O estado laico está não apenas ameaçado mas sistematicamente violado justamente nos casos, amplamente tolerados pelo sistema estabelecido, em que os cristãos têm pleno domínio sobre escolas e meios de comunicação. No entanto, não está sendo violado quando uma minoria ideológica, uma subcultura alternativa, uma instituição que age socialmente como uma opção legítima para todos os cidadãos que sintam-se compelidos a buscar spiritual guidance.
Com isso quero dizer que figuras como Bush pai e Bush filho violaram muito mais o estado laico com suas guerras de agressão contra o Iraque, por exemplo, baseadas em um linguajar teocrático do cristão supremacista, do quê Osho o violou. Osho não era nenhum santo, é claro, e podemos questionar suas posturas hiper capitalistas, seu apego a uma frota imensa de carros Rolls-Royce, seu uso e abuso de gestos que se tornaram quase esterotipados numa espécie de mímica Namastê infinitamente encenada e repetida etc. Mas o fato é que Osho foi um líder religioso bastante incomum, provocativo, criador de dispositivos Gurdjieffianos de ampliar a consciência e descondicionar comportamentos ensinados, propiciando experiências de Despertar.
Porém, Osho teve seu direito a permanecer nos Estados Unidos negado, e foi apenas por causa da violência da repressão movida contra eles em Rajneeshpuram que algumas medidas drásticas foram tomadas pela comuna: a compra de armamento pesado de auto-defesa, o treinamento para uso de armas de fogo, além dos laboratórios que depois seriam acusados de terem servido a prática de bioterrorismo como a contaminação por salmonella etc. A série é maravilhosamente repleta de elementos do thriller pois demonstra como Rajneeshpuram é obrigada a tornar-se uma espécie de QG guerrilheiro devido à hostilidade extrema da população local de Antilope – o que chega a adquirir contornos de uma guerra civil local, que escala para uma crise nacional, exigindo a intervenção dos maiores poderes da República para extraditar Osho e desfazer sua comuna.
Os discursos de Sheila mostram alguém que, em alguns aspectos, argumenta como os Panteras Negras em prol da auto-defesa com uso de armas como algo digno e legítimo, violando assim aos olhos dos normopatas cristãos o sagrado “turn the other cheek”. Sheela vai defender que é indigno virar a outra bochecha para que o opressor bata mais uma vez.
Se entendi bem, os Rajneeshs julgam-se legitimados pelo tema da laicidade do Estado republicano moderno: uma minoria religiosa como aquela liderada por Osho e Sheela deveria ter guarida e direitos plenos de exercer suas atividades e ter suas comunidades nos EUA laico. Não é o que a série mostra, na verdade vemos a distopia da religious bigotry e do desrespeito ao Estado laico em prol de um Estado cristão (logo, teocrático) alçando suas garras intolerantes, censoras, e mesmo homicidas (Wild Wild Country também é repleta dos planos para assassinar Osho), que se voltam contra a comuna de Rajneeshpuram.
Na série Missa da Meia-noite também há um debate interessante sobre a laicidade do estado no Episódio 3, Provérbios, que inclui uma cena memorável onde o Xerife muçulmano e a professora Cristã batem boca por terem visões divergentes a respeito da decisão tomada pela direção da escola pública da Ilha de presentear cada um dos estudantes com uma Bíbla. O Xerife muçulmano pondera que se ele tivesse comprado centenas de exemplares do Alcorão e os tivesses distribuído para todos os habitantes da Ilha, provavelmente a professora Cristã defenderia que ele fosse enxotado da comunidade.
A professora Cristã aproveita-se do clima de crença em milagres que se propagou pela ilha desde que o novo padre aparentemente restituiu a capacidade de andar a uma paraplégica, e faz um elogio da atitude de conceder uma Bíblia grátis para seu alunado, porém isso implica que não só o Alcorão, a Torá, os livros de Osho ou Krishnamurti, foram usurpados ao conhecimento dos estudantes. Uma escola pública que distribui Bíblias está sim violando o princípio da laicidade do estado, ainda que, por ser uma violação cometida por uma maioria religiosa, ou seja, por um poder hegemônico, aqueles que contestam esta preferência explícita dada ao condicionamento cristão das consciências e comportamentos acabam sendo voz vencida.
No caso de Rajneeshpuram, tal qual Wild Wild Country nos apresenta a comunidade, vemos que a tentativa de basear um enclave utópicos em valores orientais, em doutrinas para além do mundo judaico-cristão, com elementos de budismo, hinduísmo, taoísmo, confucionismo, unidos de maneira sui generis na doutrina de Osho, vê-se acossada por repressão pesada do establishment nos EUA. Este não poderia tolerar nem mesmo seus próprios hippies tomadores de LSD e que protestavam contra as guerras imperialistas, muito menos um grupo de estranhos doidões da Índia que pregavam sexo livre e desconstruíam a família tradicional, propondo curas e convívios que escandalizavam as mentes condicionadas a ver o cristianismo como verdade absoluta e moral inescapável.
Para além de sua excelência como série documental, muito bem pesquisada e montada de maneira acachapantemente interessante, Wild Wild Country desconstrói a centralidade de Osho – que passa anos em silêncio, sem falar publicamente – e dá protagonismo a Sheela, uma personalidade das mais complexas e fascinantes, uma rebelde genuína que confunde o espectador com suas provocações: eis uma gênia ou uma demônia em meio a estes épicos conflitos? Como bem destacado por NPR:
“At the heart of this conflict is Ma Anand Sheela, Rajneesh’s “secretary,” who became the de facto day-to-day leader of the commune, particularly after Rajneesh stopped speaking publicly for a period of years. She was a controversial, aggressive spokesperson at the time, and intentionally provocative (as she explains it). Sheela was eventually convicted of multiple crimes and sentenced to 20 years in prison, but she was released early in 1988. In the documentary, she’s interviewed at length — she still denies the most serious charges to which she ultimately pleaded guilty — and she can be both frightening and compelling.
In old footage, the locals who speak about encounters with the Rajneeshees (whom they clearly despised) sometimes seem to have feared them for the same reason minority populations so often meet resistance: They are different, they are “weird,” and their leaders are, by some definition, foreign — in this case, Indian people committed to traditions that the majority wasn’t familiar with. On the other hand, Sheela all but admits that she was intentionally provoking hostilities with state and local governments, and all agree that the Rajneeshees built up an impressive stockpile of weapons.
Moreover, the fact that Sheela is a woman who projects such confidence and, in the old archival footage, such utter fearlessness, inspires fascination — if not outright admiration — in some viewers, in spite of things she did that they find disturbing. You’ll hear the word “bad-ass.” Her defiance is tinged with humor, with flashes of a smirk, in a way that almost always leads women in the public eye to be punished, whether they are doing anything wrong or not. So even knowing all the things she did, it’s not hard to find people, women especially, who appreciate her (sometimes literal) flipping of the bird to people who don’t like her. It is, as they say, complicated.
(…) The heart of Wild Wild Country is its conviction that this answer, this verdict that will vindicate either the complaining neighbors or the Rajneeshees who felt discriminated against — probably does not exist. This was a cascading disaster, with plenty of blame to go around and plenty of pain, too.”
A série é excelente por sua abertura: ela não fecha o sentido, não julga por nós os personagens, apenas fornece uma considerável massa de informação que nos permite refletir sobre muitos temas – alguns deles que nem comecei a tratar por aqui. Sobretudo, revela a irrupção de elementos distópicos no meio de uma tentativa de constituição de um enclave utópico, conduzindo-nos a pensar numa indissociabilidade entre utopia e distopia no mundo real, onde nenhuma “ilha” de perfeição poderia se fazer carne sem despertar, a seu redor, a fúria do “velho mundo”, a reação furibunda dos defensores do instituído, por pior que este seja e por mais sedutor e instigante que seja a proposta de uma outra sociedade construída pelos “rebeldes”.
Por tudo isto, Wild Wild Country não é apenas uma obra audiovisual contemporânea recomendadíssima para que a gente assista, mas sobretudo para que a gente debata – aqui, o conceito de TV se expande para abarcar uma função social crucial: provocar o debate público com informação histórica e jornalística extensa e qualificada. A melhor síntese talvez esteja no próprio poster da série onde a imagem de Osho vem acompanhada do seguinte slogan, que entremescla utopia e distopia, céu e inferno, bem e mal, santidade e malevolência, num caldo profundamente humano de ambiguidade e indecibilidade ética: he created one hell of a utopia.
Publicado em: 12/01/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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